O coração hebreu e a balança de Mâat

Já percebeu quantas vezes a palavra “coração” é citada na bíblia cristã? Bom, depende um pouco da versão, mas entre 808 e 876 vezes. É coração à beça né!!

No antigo Egito o coração também era uma parte importante, e não apenas porque bombeia o sangue. No pós-morte esse era o órgão pesado para avaliar se o seu dono festejaria sua passagem ou teria o coração devorado.

Outras religiões (novas e antigas) também tratam desse órgão com um olhar mais incorpóreo e transcendental, mas hoje queremos falar sobre o coração hebraico.

No hebraico antigo, a palavra coração é formada por duas letras, que para a cultura ocidental podem ser citados como dois símbolos:

לב

ב – LÂMED (Lê): Similar a um cajado de pastor, quando usado sozinho significa “para”, mas quando usado em conjunto com outras letras estabelece “autoridade”. Os pastores de ovelhas, uma das mais importantes profissões desse povo na antiguidade, utilizavam um cajado para direcionar suas ovelhas, para estabelecer direcionamento, o cajado tinha autoridade.

ל – BEIT (V): É o desenho da planta baixa de uma tenda nômade,  como se significasse “dentro de casa”, e sozinha essa letra se traduz como “em” ou “no”, como exemplo o livro de Números tem como título original “Bemidbar” junção de beit com midbar, e significa “no deserto”.

Ao juntarmos os símbolos de Lâmed com Beit temos lev (לב), traduzido como coração, mas com um significado mais transcendental “para dentro”, ou a minha preferida “autoridade interior”,  que “governa a casa”.

Na mentalidade bíblica, lev (לב) recebe a mesma conotação que hoje damos para coração como centro das emoções, mas nessa cultura ele representa todo o ser interior, e sua melhor equivalente para o português seria a “psique”.

Lev (לב) expressa no hebraico bíblico inúmeras qualidade morais e personalidades humanas como exemplo:

  • A pessoa honrada é descrita como yashar-lev, “coração reto” (Salmos 7:11)
  • Uma pessoa teimosa é kashe-lev, “coração duro” (Ezequiel 3:7)
  • Arrogantes e culpados de gevah-lev, “coração elevado” (Provérbios 16:5)
  • Desonestos tem um lev va-lev, “coração e coração” ou “coração duplo” (Salmos 12:3)
  • Uma pessoa corajosa é chamada de amitz-lev, “coração poderoso” (Amós 2:16). E aqui podemos lembrar de Davi, que foi citado como corajoso, e sua coragem foi lembrada como amitz-lev, ele tinha mais do que coragem, seu coração era poderoso.

Em um determinado trecho da história desse povo, os escritos relatam que o coração do faraó do Egito enegreceu, e isso deve ter sido um baita problema para o faraó, pois na religião egípcia a deusa Mâat estaria com uma balança de dois pratos, daquelas bem antigas, o esperando no julgamento dos mortos, e pesaria seu coração comparando ele com o peso da pluma que Mâat geralmente levava como ornamento em sua cabeça, se os pratos (um com a pluma e o outro com o coração do falecido) ficassem em equilíbrio o morto poderia festejar com as divindades e os espíritos dos demais mortos, mas se o coração fosse mais pesado Mâat devolveria  “a peça” para Ammit que o devoraria ferozmente.

Alguns textos falam que “o Senhor endureceu o coração de Faraó”, foi o que Deus disse para Moisés:

  • “Mas eu vou endurecer o coração dele, para não deixar o povo ir.” Êxodo 4:21
  • “Mas o Senhor endureceu o coração do faraó, e ele se recusou a atender Moisés e Arão, conforme o Senhor tinha dito a Moisés.” Êxodo 9:12

Outros textos afirmam que foi o próprio faraó que endureceu seu coração:

  • “Mas também dessa vez o faraó obstinou-se em seu coração e não deixou que o povo saísse.” Êxodo 8:32

E um terceiro grupo de textos apenas relata que o faraó teve o coração endurecido:

  • “Contudo, o coração do faraó se endureceu e ele não quis dar ouvidos a Moisés e a Arão” Êxodo 7:13
  • “Os magos disseram ao faraó: “Isso é o dedo de Deus”. Mas o coração do faraó permaneceu endurecido, e ele não quis ouvi-los, conforme o Senhor tinha dito.” Êxodo 8:19

Bem, a bíblia não relata qual era o nome desse faraó, mas históricamente se acredita que foi Thutmose II ou III, ou Ramsés I ou II. Mas fato é que seja lá quem foi o faraó que enfrentou o deus dos hebreus, esse rei  teve sérios problemas ao encarar Mâat no seu julgamento após a morte.

Certo é que a simbologia de coração como o centro das emoções e da psique é presente desde tempos remotos, e que um coração pesado e enegrecido sempre foi traduzido como algo que trará dor ao seu dono, provavelmente em longo prazo tanto quanto será longa sua aflição.

O Deus dos hebreus (aí então judeus) diz para o profeta Ezequiel: “E dar-vos-ei um coração novo, e porei dentro de vós um espírito novo; e tirarei da vossa carne o coração de pedra, e vos darei um coração de carne.” Ezequiel 36:26

Então mesmo que tudo esteja perdido “dentro da casa”, como traduziremos coração aqui, ainda existe uma salvação. Olha que interessante, um coração de carne teria o mesmo peso da pluma de Mâat na balança, ao contrário do coração de pedra. Então o que Ezequiel disse serviria mesmo que fosse para a religião egípcia, como a salvação do nosso “eu interior”. Nesse ponto o Deus de Ezequiel não prometia algo somente para os hebreus/judeus considerados seu povo, e sua promessa de restauração do coração, das emoções, da personalidade, da psique e de todo o interior humano, se estendeu para toda e qualquer pessoa, indiferente de sua cultura ou religião.

E você, como tem cuidado do seu coração?

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